quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

STELA DO PATROCÍNIO – UMA TRAJETÓRIA POÉTICA EM UMA INSTITUIÇÃO PSIQUIÁTRICA

Aline Drummond de Mendonça


Foucault no início dos anos 60 escreveu a História da loucura livro esse que reflete e resiste ao gigantesco aprisionamento moral que constitui o monopólio da razão sobre a loucura. Nesse livro ele inicia uma investigação que teve grande importância teórica e política em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil, orientando nossos estudos sobre o nascimento e as transformações dos saberes sobre a doença mental e a anormalidade e principalmente, fundamentando nossas lutas políticas por soluções alternativas à reclusão asilar.
A História da loucura trás duas descobertas importantes: primeiro, antes de se tornar doença mental a loucura era apenas doença e como doença estava integrada a racionalidade médica própria da época clássica, que não distinguia o físico e o mental; segundo, não havia hospital psiquiátrico, o que havia eram instituições assistenciais que nada tem haver com a doença e recuperação do louco, eram estabelecimentos de exclusão dos indivíduos considerados perigosos porque “desrazoados”.
A psiquiatria tem aí suas condições antecedentes históricas nesse processo de dominação onde suas condições são mais institucionais do que teóricas. Com isso estamos afirmando que: a loucura só se tornou objeto de conhecimento científico na modernidade, porque foi antes objeto de exclusão moral e social no “grande enclausuramento” clássico como “desrazão”, ausência de razão.
É preciso tornar visível o jogo moral que a razão oculta em sua aparente busca da verdade. O que a razão quer é, desde seu nascimento platônico, rejeitar uma parte da vida, a que muda, a que delira. O que a razão quer é produzir um mundo de identidades e verdades, um mundo previsível e claro. Em conseqüência, tudo o que é escuro, imprevisto, móvel é excluído.
É nesse espaço que se insere a loucura e ousaria dizer que Stela se sustenta em uma ordenação delirante, uma ordenação móvel, fundada na afirmação de sua própria fragmentação. A palavra lhe parecia muito íntima, muito próxima, não a palavra da comunicação, do “rebanho” como diria Nietzsche, mas a palavra deslocada da interioridade e da subjetividade cotidianas.
Stela foi capaz de lançar um olhar sobre a condição asilar, falar de sua situação no hospital, se deparar, enxergar, localizar no hospital sua “doença”, sua prisão, sua condição ali : “ficar pastando”. Esta lucidez depois de quase trinta anos neste espaço asilar de absoluta uniformidade, é uma das coisas que mais me impressiona em Stela do Patrocínio.
A fala de Stela é valiosa antes de tudo pelo que diz : ela registra um lugar, uma condição, a da internação em regime fechado, mas é também muito valiosa pelo caráter vitorioso de uma conquista da exterioridade : ler e ouvir Stela é integrá-la no discurso que um dia a excluiu, a de um discurso que ultrapassou os muros da instituição.
Todos nós sabemos o que são estes muros e o que significa ultrapassa-los, principalmente se utilizando da palavra que foi o primeiro domínio de exclusão da loucura.
Assim, que a fala do mundo seja acrescida da fala de Stela.

“Eu estava com saúde
Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
Me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente”

“Eu vim do Pronto Socorro do Rio de janeiro
Onde a alimentação era eletrochoque, injeção e remédio
E era um banho de chuveiro, uma bandeja de alimentação
E a viagem sem eu saber para onde ia
Vim parar aqui nessa obra, nessa construção nova”

“ O remédio que eu tomo me faz passar mal
E eu não gosto de tomar remédio pra ficar passando mal
Eu ando um pouquinho, cambaleio, fico
Cambaleando
Quase levo um tombo
E se eu levo tombo eu levanto
Ando mais um pouquinho, torno a cair”

“Estar internada é ficar todo dia presa
Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo portão
Maria do Socorro não deixa eu passar pelo portão
Seu Nelson também não deixa eu passar lá no portão
Eu estou aqui há vinte e cinco anos ou mais”

“Aqui no hospital ninguém pensa
Não tem nenhum que pense
Eles vivem sem pensar
Comem bebem fumam
No dia seguinte querem saber
De recontinuar o dia que passou
Mas não tem ninguém que pense
E trabalhe pela inteligência”

“No céu
Me disseram que deus mora no céu
No céu na terra em toda parte
Mas não sei se ele está em mim
Ou se ele não esta
Eu sei que estou passando mal de boca
Passando muita fome comendo mal
E passando mal de boca
Me alimentando mal comendo mal
Passando muita fome
Sofrendo da cabeça
Sofrendo como doente mental
E no presídio de mulheres
Cumprindo prisão perpétua
Correndo um processo
Sendo processada”

“Perdi o gosto o prazer o desejo a vontade o querer”



Estamos com esse trabalho sustentando que precisamos romper com os limites instaurados pela razão e nos permitir a experiência de ouvir as vozes dos “mal-ditos”.
“A percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual se denuncia uma fala como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a um lugar na história.”
Com isso somos levados hoje a fazer uma análise crítica a respeito da situação dos loucos desde o classicismo e negar que a medicalização ou a psicologização da loucura seja o resultado de um progresso que teria nos levado ao desvelamento de sua essência ou de seu tratamento.


Bibliografia:

Foucault, Michel – Ditos e Escritos I – Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
______________ - História da Loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1993.

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