sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS EM SAÚDE MENTAL: OBSTÁCULOS E DESAFIOS

Aline Drummond de Mendonça

“Não permitir que as residências terapêuticas se transformem em lugares sem recuperação social (mini-manicômios).”[1]

A implantação efetiva da Reforma Psiquiátrica requer o desenvolvimento de programas de desinstitucionalização das pessoas há longo tempo internadas, que visem os processos de autonomia, de construção dos direitos de cidadania e de novas possibilidades de vida para todos e que garantam o acesso, o acolhimento, a responsabilização e a produção de novas formas de cuidado do sofrimento. Neste processo é fundamental a criação de Serviços Residenciais Terapêuticos com capacidades e recursos para desenvolver o acompanhamento de usuários objetivando a inserção familiar e social.
Desta forma, a desinstitucionalização e efetiva reintegração de doentes mentais graves na comunidade é uma tarefa a que o SUS vem se dedicando com especial empenho nos últimos anos.
“Nós devemos entender aqui que a desinstitucionalização não seja idêntica à simples abertura das portas do manicômio. A luta que se desenvolve é contra uma instituição manicomial ou um manicomialismo. Mais propriamente falando, é contra uma lógica interna à instituição que tende à sua própria auto-reprodução, anulando os atores enquanto sujeitos de transformação. Sem essa clareza, corre-se o risco de que, mesmo um serviço extra hospitalar, reproduza-se a mesma lógica manicomial, que se criem serviços modernos, mas que continuam a ser instituições da violência, locais de exclusão e segregação social. Basaglia, ao se referir às instituições, dizia que abrir uma instituição, o manicômio, não é apenas abrir as portas, mas abrir a nossa cabeça em confronto com aquele que nos procura. Isso faz com que se modifique a própria relação técnico-usuário, isto é, um técnico não tem mais respostas institucionais prontas a priori, mas deve criar alternativas concretas dentro da própria relação tensa, de sujeito a sujeito, de cidadão a cidadão, entre aquele que procura um serviço e aquele técnico que recebe uma demanda."[2]
Sabemos que as residências terapêuticas constituem alternativas às internações, porém, para que essas moradias não sejam apenas a simples substituições geográficas dos leitos hospitalares com a manutenção de práticas e comportamentos manicomiais, para que este risco possa ser evitado, mesmo sabendo que não há receitas prontas e definitivas, penso que talvez a especificidade do nosso exercício profissional seja produzir certa disposição para construir problemas nos espaços por onde circulamos, nos coletivos de trabalho, entre usuários e para nós mesmos. Que nosso foco seja interrogar sobre como ocupamos as cenas, como as produzimos: enquanto interditores ou produtores de vida? Que nosso agir seja lutar contra o ímpeto da prescrição de modos de existir no mundo, o que nos faz técnicos da correção e da modelagem.
“As residências terapêuticas, digamos, são uma espécie de calcanhar-de-aquiles do processo da reforma. É muito difícil implantá-las. Há uma resistência muito grande. Há uma dificuldade real e concreta de se criar esse dispositivo. Temos apenas dois mil pacientes, dos quais setecentos e cinqüenta estão no estado de São Paulo. No resto do Brasil há mil e trezentos pacientes em residências terapêuticas. É um número bastante baixo, se considerarmos que temos cinqüenta e cinco mil pacientes internados. Muitos desses pacientes que precisam da residência terapêutica vão sair da sua vida no hospital psiquiátrico. É interessante, pois, cada vez que se cria uma vaga de residência terapêutica, é fechado, no sistema, um leito. Fazendo assim, vamos reduzindo os leitos criteriosamente. Criou-se o serviço, a residência, bloqueia-se aquela vaga e não existe mais aquela vaga no hospital psiquiátrico.”[3]
“Tenho observado que os órgãos de representação da categoria médica e dos psiquiatras começam a resistir à idéia da reforma psiquiátrica. Isso me parece totalmente equivocado. Os profissionais comprometidos com a boa prática médica não podem esquecer que, certa vez, se aliaram aos proprietários de hospitais e se tornaram subempregados, funcionários desqualificados, mal pagos e desrespeitados. Não podem esquecer também que se aliaram, outra vez, aos empresários de seguro-saúde, e deles se tornaram escravos, sem autonomia profissional e sem controle sobre as possibilidades terapêuticas. Em que pesem todos os problemas e limitações, é no SUS que ainda podemos, não apenas médicos, mas todos os profissionais do setor, realizar as possibilidades reais da saúde em nosso país. Seja porque o SUS é o maior e mais promissor mercado de trabalho nessa área (e não se iludam quanto a isso), seja porque é o mais democrático e inclusivo sistema de saúde público do mundo.”[4]
Assim, torna-se fundamental refletirmos os motivos subjacentes às dificuldades de implementação das residências terapêuticas. Não é apenas nos níveis administrativos, financeiro e organizacional que encontramos resistência à reforma psiquiátrica.
“Mas, além desses, e de um modo muito mais sutil e refinado, se escancaram as nossas precariedades pessoais, teóricas, práticas, para lidar com uma demanda oceânica e desconcertante, que habitualmente impõe a escolha dilemática entre tolher, aplacar, ocultar, como fazem as instituições totais para administrar o incômodo, ou, de um modo, partir para um desafio incomensurável de facilitar produção de subjetividade com o peso do desconcerto, da provisoriedade das teorias, do desenclausuramento de si próprio para acompanhar os caminhos do outro.”[5]

[1] Relatório do VII Encontro Nacional de Usuários e Familiares do Movimento da Luta Antimanicomial de 18 à 21/09/2003, Xerém – Duque de Caxias, RJ.
[2] Tykanori, Roberto – “Uma experiência pioneira: a reforma psiquiátrica italiana” in Saúde Mental e Cidadania; Edições Mandacaru, Plenário de Trabalhadores em Saúde Mental do Estado de São Paulo.
[3] Delgado, Pedro Gabriel Godinho – “Protagonismo Social da Psicologia na Reforma Psiquiátrica” in Relatório do II Seminário Nacional de Psicologia e Políticas Públicas, de 28 à 31/05/2003 Espaço Cultural João Pessoa, PB.
[4] Amarante, Paulo – “Rumo ao fim dos manicômios” in Revista Mente e Cérebro, setembro de 2006, pág. 35.
[5] Pitta, Ana Maria Fernandes – “Cuidando de Psicóticos” in clínica da psicose: um projeto na rede pública Te Cora Editora: Instituto Franco Basaglia, 1994; pág. 165-66.

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