quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA

Aline Drummond de Mendonça


“Sufoco da vida
Estou vivendo no mundo do hospital
Tomando remédio de psiquiatria mental
Haldol, Diazepan, Rohypnol, Prometazina...
Meu médico não sabe como me tornar um cara normal

Me amarram, me aplicam, me sufocam num quarto trancado
Socorro! Sou um cara Normal asfixiado.
Minha mãe, meu irmão, minha tia, me encheram de drogas
De Levomepromazina.

Ai, ai, ai que sufoco da vida
Estou cansado de tanta Levomepromazina”[1]

A Antipsiquiatria e a Reforma Psiquiátrica Italiana construíram um modelo de cuidado que não conduz a hospitalização e à sedação para o controle e o silenciamento dos sintomas, mas conduz a desinstitucionalização.
A desinstitucionalização, em primeiro lugar, aspira-se a uma transformação no âmbito da sociedade, isto é, na forma com que a sociedade lida com a loucura, e não apenas meramente a uma luta para a transformação interna do manicômio ou a desospitalização.
Em outras palavras, a desinstitucionalização ultrapassa tanto as concepções de reformar, humanizar os manicômios, quanto às concepções de desospitalização para reportar ao sentido da desconstrução do saber psiquiátrico (desconstrução do conceito de doença mental, das técnicas e dos técnicos) que, digamos e convenhamos, é falido nas suas pretensões terapêuticas, mais ainda assim, é produtor inquestionável de um saber/verdade sobre o louco e a loucura.
É essa construção que a psiquiatria elabora sobre o louco que a sociedade assimila e reproduz e, assim, dessa forma a instituição psiquiátrica extrapola os muros dos hospícios e torna-se uma das instâncias reguladoras do espaço social.
Com base no que se supõe ser o louco, a loucura na nossa sociedade é sinônimo de demência, agressividade, insensatez, periculosidade, irresponsabilidade, termos que deixam bem claro que negam o próprio sofrimento, o sujeito, a pessoa. Ainda hoje, e que nos deixa muito tristes, constatamos que a doença mental é determinada pelo conceito de periculosidade, irrecuperabilidade e incompreensibilidade.
Assim, a psiquiatria não se relaciona com o louco, mas com o doente, e o louco, não se relaciona mais consigo mesmo nem com o outro, mas com a doença que o define. Então, o processo de desinstitucionalização deve ser realizado com o objetivo de possibilitar emergir o sujeito, seus desejos e sentimentos que foram negados pela série de pré-conceitos científicos fundados no conceito de doença mental.
Logo, podemos afirmar que, a desinstitucionalização é um processo de desconstrução dos saberes que gravitam em torno do conceito de doença mental e de suas práticas e também a invenção de novas formas de lidar, não mais com a doença, mas com o sujeito doente.
Desinstitucionalizar a doença mental para aprendê-la de outra forma, conferir um outro destino à existência-sofrimento em relação ao corpo social. O dispositivo da desinstitucionalização ou dispositivo da saúde mental é a invenção, a criação de um espaço de produção de novas subjetividades, de sociabilidade, de produção de seus desejos, seus projetos, sua história, enfim, da manifestação da real existência da pessoa. O trabalho de desinstitucionalização está voltado para reconstruir as pessoas como atores sociais, para impedir-lhes o sufocamento sob o papel, a identidade estereotipada e introjetada que se sobrepõe à dos doentes.
Podemos concluir que o primeiro passo da desinstitucionalização[2] consiste em desconstruir a idéia da doença que precisa de cura, em torno do qual se legitima o “isolamento”, a medicalização, a tutela e a desqualificação do sujeito. Onde este, passa a ser a história de uma doença. O segundo passo da desinstitucionalização é o envolver e mobilizar, nesse processo, estes mesmos sujeitos enquanto atores sociais, enquanto protagonistas de suas histórias, enfim, a desinstitucionalização é um processo inventando novas possibilidades de inscrição dos sujeitos no corpo social.
O objetivo da desinstitucionalização da loucura é criar um espaço social para o louco, porque sabemos que nossa sociedade conduz à discriminação e não a solidariedade. Então, nós profissionais da saúde precisamos construir um espaço social numa sociedade que não costuma abrir espaço social para pessoas que são diferentes.
Logo, a nossa luta se trava no campo da cultura, do imaginário social, no campo das representações, preconceitos e estigmas que vão inspirar legitimar ou mesmo serem coniventes com práticas de exclusão e de eliminação das diferenças.
Sendo assim, na desinstitucionalização da loucura trata-se de admitir a pluralidade de sujeitos, com suas diversidades e diferenças; trata-se, ainda, de um processo de construção de cidadania para que o louco não seja excluído, violentado, discriminado, mas que possa ser acolhido em seu sofrimento.
Enfim, trata-se de trabalhar para que o louco seja um sujeito de desejos e projetos.



[1] “Sufoco da vida” in CD do Harmonia enlouquece.
[2] Amarante, Paulo – O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de janeiro: Editora Fiocruz, 1996, pág, 105.

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