quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO SOBRE AS DOENÇAS MENTAIS? Será que a hospitalização transforma as doenças mentais?

Aline Drummond de Mendonça

Estar “perdendo a cabeça” - significação socialmente imposta de alguns sintomas tais como ouvir vozes, perder a orientação espacial e temporal, sentir-se perseguido - ou o controle de si mesmos parece ser uma das coisas mais amedrontadoras que podem ocorrer ao eu em nossa sociedade.
Como aceitar essa interpretação desintegradora de si mesmo? O que fazer com a angústia resultante dessa percepção? De que forma respondemos ao sofrimento psíquico?
A internação psiquiátrica é a nossa resposta. Internar por já não ser mais aceito na sociedade externa, devido ao fato de ter ultrapassado o limite da norma fixado por ela. Portanto, a internação acena como uma possibilidade de viver na “norma”, no “bem estar” e numa crença no caráter médico dos hospitais, onde a hospitalização é tida como uma “solução boa”, afinal de contas, é uma ação em nome da ciência. Como nos fala Lima Barreto:
“ disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospício.”[1]
Essa crença não leva em conta que a hospitalização pode piorar a situação, o sofrimento do paciente, uma vez que a internação confirma o que até então fora um problema da experiência íntima do eu. Mais uma vez, nos lembra Lima Barreto:
“Esta passagem várias vezes no hospício e outros hospitais deu-me não sei que dolorosa angústia de viver que eu me parece ser sem remédio a minha dor.”[2]
Sabemos que um conjunto importante de circunstâncias fazem com que a pessoa fuja ao seu destino, mas quando essa pessoa é internada, outro conjunto de circunstâncias ajuda a determinar o seu destino social, a vida dessa pessoa. Dizemos com Goffman (1961), que os doentes mentais internados sofrem, não de doença mental, mas de outras circunstâncias. As circunstâncias que participam os agentes - a pessoa mais próxima, o denunciante e os mediadores (polícia, clero, psiquiatras, advogados, assistentes sociais, professores e assim por diante) - na sua transição da pessoa do status civil para o de paciente, isto é, em sua passagem do status civil para o internado despojado de quase tudo. Evoco novamente Lima Barreto:
“ Como é que eu, em vinte e quatro horas, deixava de ser um funcionário do Estado, com ficha na sociedade e lugar no orçamento, para ser um mendigo sem eira nem beira, atirado para ali que nem um desclassificado?”[3]
“Pela primeira vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o desgraçado.Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu corpo, era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia”[4]
Aqui, a questão é saber como se consegue esse despojamento, essa expropriação?
Segundo Foucault (1975), a Disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Donde, o hospital constituirá o local adequado a esse regime disciplinar.
A vida dos internados é regida por autoritarismo, limites forçados e burocracia. O ritmo da vida dos asilos é marcado por regras forçadas e mortificações não levando em conta o homem no seu livre situar-se no mundo. O hospital o impede de continuar a buscar o seu lugar que ao ditar regras, exigências organizacionais não levam em conta o indivíduo singular e as particularidades de cada um.
A hospitalização, o internamento , essa complexa organização do espaço fechado, esse sistema de isolamento e vigilância, aniquila a individualidade e a liberdade do doente, ou seja, viola o projeto individual.
A individualidade é perdida e oprimida pelo poder institucionalizante que se articula a vida do asilo, isto é, o doente ao entrar no asilo depara-se com as regras e estruturas que o impelem a objetificar-se com elas.
Identifica-se com o espaço limitado, isto é, com a privação, com a perda de sua liberdade que corresponde à imagem do homem sem objetivo, sem futuro, sem interesse, enfim, institucionalizado. Donde a apatia, o desinteresse, a deterioração psíquica resulta mais da institucionalização que da doença original, assim, como nos fala Basaglia:
“Se ele apenas começar a suspeitar que a realidade enferma à sua frente - internados que não falam porque ninguém os escuta; que não caminham porque não sabem aonde ir; que babam porque não existe uma razão para não fazer isso, porque não existe um objetivo, um fim pelo qual faça sentido resistir à tentação de deixar-se viver e vegetar - não é fruto somente de uma doença, mas de uma violência perpetrada em todos os níveis, essa realidade não pode deixar de subverter-se aos seus olhos, envolvendo-o em sua parte de responsabilidade e envolvendo os“sãos” na deles”.[5]
O doente mental é uma realidade fabricada pela instituição psiquiátrica que além de excluir, reprimir, censurar, na verdade produz; produz realidade; produz o indivíduo e o conhecimento que dele pode ter; produz “a mais triste moléstia da humanidade, aquela que nos faz outro”.[6]
Não se deve perder de vista que os hospitais psiquiátricos não só espelha a sociedade, como está profundamente a ela vinculado, ou seja, a sociedade constrói a imagem social da doença mental que se revelará determinante no desenvolvimento da própria doença. Imagem esta que pouco tem a ver com a própria doença, mas sim com a exclusão social, com o encarceramento. Cabendo, então, ao hospital psiquiátrico à gestão dessa exclusão e aos médicos psiquiatras converter em patologia, isto é, sob o rótulo de doença, tudo aquilo que é sinal de uma vida que não se pode viver.
Donde podemos concluir, a instituição psiquiátrica é um saber totalmente comprometido com a necessidade de exclusão das pessoas, do delegatório que a sociedade dá ao psiquiatra de excluir e segregar as pessoas.
É preciso, hoje mais do que ontem, ter a lucidez de Artaud para denunciar, para dizer: “a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras. Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis”.[7]


Referências Bibliográficas:

Amarante, Paulo – Saúde Mental, políticas e instituições : programa de educação a distância. Rio de Janeiro : FIOTEC/FIOCRUZ , 2003.
Artaud, Antonin – Os Escritos de Antonin Artaud – Porto Alegre: L&PM editores, 1986.
Barreto, Lima – O cemitério dos vivos – São Paulo:Editora Planeta do Brasil; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.
Basaglia, Franco – Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. – Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
Foucault, Michel – O nascimento do hospital. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
______________ - Vigiar e punir: o nascimento da prisão - Petrópolis, Vozes, 1987.
Goffman, Erving – Manicômios, Prisões e Conventos – São Paulo: Perspectiva, 2005.


[1] Barreto, Lima – “Diário do hospício” in O cemitério dos vivos; pág, 22.
[2] Idem; pág, 60.
[3] Barreto, Lima – O cemitério dos vivos; pág, 184.
[4] Idem; pág, 230.
[5] Basaglia, Franco – “Introdução a Asylums”; pág, 142.
[6] Barreto, Lima – O cemitério dos vivos; pág, 200
[7] Artaud, Antonin – “Van Gogh: o suicidado pela sociedade”; pág, 133.

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