quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL

Aline Drummond de Mendonça


Saúde mental – quantas vezes ouvimos algum profissional dizer que trabalha na saúde mental? Ou quantas vezes ouvimos um amigo falar que tem interesse em cursar a disciplina de saúde mental que está sendo nesse semestre oferecida na universidade?
O que ele está dizendo com isso? Mas o que é Saúde mental?
Podemos extrair um primeiro sentido da expressão saúde mental a partir da Organização Mundial da Saúde que considera que saúde é o “estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Poderíamos admitir que com esta definição fosse muito difícil estabelecer - o que é este estado de completo bem-estar... Questiono se há alguém assim!
Vamos prosseguir com nossas reflexões. Anteriormente, perguntei se quando algum profissional nos diz que trabalha na saúde mental, o que ele está dizendo com isso? Ora muitos dirão que pergunta óbvia! Ele está dizendo que trabalha com questões relacionadas à saúde mental das pessoas! Ponto final nessa conversa, já está respondido.
Mas eu insisto nessa questão por que até muito pouco tempo atrás trabalhar na saúde mental era o mesmo que trabalhar em hospícios, em manicômios, em ambulatórios e emergências de crise psiquiátrica. Era trabalhar com loucos agressivos, em ambientes carcerários, desumanos, de isolamento e segregação.
Significava dizer que trabalhava com doenças mentais – mas o que é doença mental? È o oposto de saúde mental? Será que encontramos agora um outro sentido da expressão saúde mental?
Entretanto, parece óbvio, mas é muito difícil definir hoje o que vem a ser saúde mental. Sabe por quê? Por que a saúde mental não se baseia em apenas um tipo de conhecimento, a psiquiatria e muito menos é exercida por apenas um profissional o psiquiatra.
Quando nos referirmos hoje à saúde mental, está presente além da psiquiatria outros saberes tais como a neurologia e as neurociências, a psicologia e a psicanálise.
Para dar prosseguimento à nossa discussão é necessário revisitar o pai da psiquiatria – o médico Philippe Pinel – pois suas idéias e feitos ainda hoje repercutem no campo da saúde mental.
Pinel ao escrever o Tratado Médico-Filosófico sobre Alienação Mental ou a Mania, o primeiro livro da disciplina que futuramente viria a ser conhecida como psiquiatria, lançou as bases do que ficou conhecido como a síntese alienista. Elaborou uma primeira classificação das enfermidades mentais, consolidou o conceito de alienação mental e a profissão do alienista, fundou os primeiros hospitais psiquiátricos, determinou o princípio do isolamento para os alienados e instaurou o primeiro modelo de terapêutica ao introduzir o tratamento moral.
Quanta coisa! É, mas vamos ver mais de perto esses conceitos e estratégias.
Vamos começar pelo conceito de alienação mental. Mas o que significa alienação?
Alienação era conceituada como um distúrbio das paixões, capaz de produzir desarmonia na mente e na possibilidade objetiva do indivíduo perceber a realidade.
No sentido mais comum do termo, alienado é alguém “de fora”, estar fora da realidade, fora de si, sem o controle de suas próprias vontades e desejos. Fora do mundo, de outro mundo, estrangeiro.
Na medida em que alguém fosse classificado como alienado, a partir dessa conceituação – poderia representar um sério perigo à sociedade, por perder o juízo, ou a capacidade de discernimento entre o erro e a realidade, logo, podemos afirmar que o conceito de alienação mental nasce associado à idéia de periculosidade e que ao longo de todos estes anos esse conceito contribuiu para produzir uma atitude social de medo e discriminação para as pessoas identificadas como tais. (A exemplo de Emil Kraepelin – considerado o pai da clínica psiquiátrica moderna – já em sua primeira lição em 1901, afirma que “todo alienado constitui de algum modo um perigo para seus próximos, porém em especial para si mesmo”).
Mas vamos mais adiante – o primeiro passo para o tratamento seria o isolamento do mundo exterior, hospitalização integral. Por quê? Por que o tratamento moral por pretender-se instaurador de uma organização no âmbito das paixões descontroladas do alienado e consistir na soma de princípios e medidas (impunha regras, condutas, horários) que impostos aos alienados, pretendiam reeducar a mente, afastar os delírios e ilusões e chamar a consciência à realidade. Logo, o hospital, enquanto, instituição disciplinar seria ele próprio, uma instituição terapêutica.
Dentre as mais importantes estratégias do tratamento moral estava o que Pinel denominava de trabalho terapêutico. Esse trabalho seria um meio de reeducação das mentes desregradas e das paixões incontroláveis. (No início do séc. XX, a exemplo de Waldemar de Almeida – o alienista brasileiro, considerava que o trabalho seria o meio terapêutico mais precioso, pois estimulava a vontade e a energia e consolidava a resistência cerebral tendendo fazer desaparecer os vestígios do delírio).
Assim, o modelo psiquiátrico, teve como uma de suas características principais um sistema terapêutico baseado na hospitalização. Como este modelo pressupõe um paciente portador de um distúrbio que lhe rouba a razão, um insano, um insensato, incapaz, irresponsável (inclusive a legislação considera o louco irresponsável civil), o sistema hospitalar psiquiátrico se aproxima muito das instituições carcerárias, correcionais, penitenciárias. Portanto, um sistema fundado na vigilância, no controle, na disciplina. E como não poderia deixar de ser, um sistema com dispositivos de punição e repressão.
Fomos atravessados por 2 grandes guerras mundiais e que fizeram com que a sociedade passasse a refletir tanto sobre a crueldade quanto a solidariedade existentes entre os homens e assim logo após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade dirigiu seus olhares para os hospícios e descobriu que as condições de vida oferecidas aos pacientes psiquiátricos ali internados em nada se diferenciavam daquelas do campo de concentração. Assim, nasceram as primeiras reformas psiquiátricas.
Foram muitas as experiências de reformas (Comunidade Terapêutica, Psicoterapia Institucional, Psiquiatria de Setor, Psiquiatria Preventiva, Antipsiquiatria e Psiquiatria Democrática) que aconteceram em vários países (Inglaterra, França Estados Unidos e Itália) e sabemos que estas reformas permaneceram influenciando as experiências contemporâneas.

Psiquiatria clássica – objeto: doença Mental – objetivo: curar a doença – lugar de tratamento: o asilo.
Modelo manicomial: modelo realizado em instituições fechadas, baseado na custódia, tutela, vigilância e disciplina, que promove o isolamento e segregação das pessoas.

Comunidade Terapêutica e Psicoterapia Institucional – objeto: doença Mental e a Instituição – objetivo: curar a doença e tratar a instituição – lugar de tratamento: o asilo.
Acredita na instituição psiquiátrica como lugar de tratamento. Crença de que o manicômio é uma instituição de cura, assim, tornar-se urgente resgatar esse caráter positivo da instituição através de uma reforma interna da organização psiquiátrica.

Psiquiatria de Setor e Psiquiatria Preventiva – objeto: a Saúde Mental – o objetivo: promover a saúde mental e prevenir a doença mental – lugar de tratamento: a comunidade.
Um novo objeto: a Saúde Mental, antes a psiquiatria era preocupada somente com a doença mental e em curar os doentes mentais, agora a preocupação é levar a saúde mental para toda a comunidade.
Promover a saúde mental/Prevenir a doença mental.
A Psiquiatria Preventiva foi desenvolvida nos Estados Unidos e suas bases teóricas foram explicitadas no livro Princípios de Psiquiatria Preventiva de Gerald Caplan, considerado o fundador desta corrente. Para Caplan todas as doenças mentais poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente. Na medida em que as doenças mentais eram entendidas como sinônimos de desordens, julgava-se poder prevenir e erradicar os male da sociedade.
Para ser possível construir um modelo que evitasse os episódios de doença mental seria indispensável saber quais os fatores que influenciavam o estado de saúde mental de uma população. Fundamentado no modelo sociológico da “adaptação/desadaptação” (como critério de distinção do normal e do patológico, no qual se entendia o comportamento socialmente inadaptado como sinônimo de comportamento eventualmente inadequado), pressupunha-se que a doença mental seria conseqüência de um processo de inadaptação ou desajustamento. Retomando o equilíbrio, se alcançaria a adaptação e o ajustamento e enfim a saúde mental. Donde doença mental seria o desequilíbrio, a desadaptação e o desajustamento e a Saúde Mental o equilíbrio, a adaptação e o ajustamento.


Antipsiquiatria e Psiquiatria Democrática – Voltadas para idéia de superação do aparato manicomial, entendido não apenas como a estrutura física do hospício, mas como conjunto de saberes e práticas, científicas e sociais, legislativas e jurídicas, que fundamentam a existência de um lugar de isolamento e segregação e patologização da experiência humana.
Franco Basaglia o mais expressivo protagonista da Psiquiatria Democrática Italiana considerava que a psiquiatria tinha um mal obscuro por haver separado um objeto fictício, a doença da existência global e complexa dos sujeitos e do corpo social. A psiquiatria passou a se ocupar da doença e não do sujeito que a vivencia. Os tratados de psiquiatria ocuparam-se das doenças e esqueceram-se dos sujeitos. Enfim, a psiquiatria havia colocado o sujeito entre parênteses para ocupar-se da doença, a proposta de Basaglia foi de colocar “a doença entre parênteses” para que fosse possível se ocupar do sujeito em sua experiência. Na medida em que a doença é posta entre parênteses, aparecem os sujeitos que estavam neutralizados, invisíveis, opacos, reduzidos a meros sintomas de uma doença abstrata.

Assim, as grandes experiências de reformas psiquiátricas obrigaram a psiquiatria a experimentar novas definições de doença mental e mais recentemente a psiquiatria optou por adotar o termo transtorno mental – os portadores de transtorno mental. Então uma pessoa com transtorno mental é uma pessoa transtornada, que é o mesmo que possessa!




Já a psicanálise localiza o sujeito justamente nas manifestações que, antes de Freud, eram vistas como afastamento da verdade e da razão, empecilhos à plena realização do sujeito – na neurose, as formações do inconsciente, e, na psicose, o delírio.
Assim, ao localizar o sujeito no delírio, a psicanálise redefine o campo de abordagem da loucura.
Na leitura freudiana o delírio é uma forma particular de o sujeito dizer a verdade, mas para Pinel, era ao contrário, era um afastamento da verdade, da verdade da razão. Dessa forma, as manifestações da loucura, como as alucinações e os delírios, eram associadas à perda patológica da razão e ao afastamento da realidade. Assim, antes de Freud as alucinações e os delírios eram tomados no registro do erro (o delírio é um erro da razão), mas a partir de Freud todos esses fenômenos são índices do sujeito e portadores de verdade. A indicação de Freud, portanto, é de que o sujeito deve ser buscado justamente em sua produção psicótica, e não em sua correção em prol de uma percepção correta da realidade. Nesse sentido, o avanço de Freud em relação à Pinel foi o de indicar que a cura não está na correção da loucura pela razão ou pela realidade, mas na própria construção delirante. O delírio não é patológico, mas uma tentativa de cura, o maior legado de Freud com relação à psicose foi essa assunção: o delírio é o trabalho pelo qual o psicótico reconstrói o mundo de maneira a poder viver nele. Logo, o delírio é a tentativa de cura. O curável na psicose é equivalente a tentar barrar, delimitar, temperar, apaziguar o gozo que invade o sujeito.
Como sabemos na análise de Freud, Schreber em sua agudização mais grave e duradoura, durante a qual ficou nove anos internado, evoluiu de uma situação de intensa desorganização psicótica para uma situação de estabilidade. Essa evolução acompanhou a modificação de seu delírio, cujo elemento central era o de que ele estava sendo transformado em mulher. Inicialmente, essa transformação era obra de seu médico, com finalidades escusas, e era inaceitável. Na forma final do delírio, era Deus quem o transformava em mulher, a fim de procriar com ele uma nova raça de homens. Foi o trabalho continuado de elaboração delirante que modificou o que antes era maldade perpetrada contra ele em uma iniciativa divina, harmônica com a ordem das coisas e com seu bem estar pessoal.
Foi com o trabalho de seus delírios que Schreber reconstruiu o mundo de maneira a poder viver nele mais uma vez. Cabe aqui uma pergunta – na expressão “trabalho do delírio” de que trabalho se trata? O trabalho de Schreber consiste em reinterpretar o Outro que o invade. A solução delirante faz barreira à terrível invasão do Outro. Se o médico, como foi dito anteriormente, invadia o corpo de Schreber na forma de gozo sexual, a significação “mulher de Deus” circunscreve esse gozo, torna-o aceitável para o sujeito. Reconstruir o mundo de modo a poder viver nele é o mesmo que encontrar no mundo um lugar de sujeito.
Na herança da proposição freudiana – o delírio é a cura – propõe-se que a cura da psicose não está na correção da produção psicótica pela realidade, mas em um trabalho que se faz na lógica interna dessa produção. O sujeito da psicanálise está em uma posição de trabalho. Para além ou aquém da perspectiva psicossocial, sem dúvida muito importante, a psicanálise visa a que o sujeito possa tomar aquilo que o domina e fazer disso sua inscrição de sujeito. O sujeito da psicanálise se produz quando convidado a falar sobre sua condição, produz seu próprio balizamento no real.
Assim, a posição na qual o analista recebe a produção de um psicótico não é a de referi-la a esquemas prévios e almejados de organização, cura, estabilização, aproximação paulatina de uma realidade. É a de sustentar a oferta e as condições para que o psicótico trabalhe na sua psicose.
Se a solução de Schreber foi o trabalho do delírio, Lacan mostrou que essa não é a única via de produção de sujeito na psicose, isto é, que a produção psicótica pela qual o sujeito encontra um lugar não se reduz ao delírio. Em “O seminário, livro 23: o sintoma”, sobre James Joyce, Lacan afirmou que a criação artística também pode funcionar como suplência. Não a construção delirante, mas a obra, o fazer, a criação tendo o efeito de tratar o gozo para não ser aniquilado por ele. Lacan chamou essa criação de sintoma, dando-lhe a conotação de organizador da experiência do sujeito.
O exemplo mais próximo é o de Arthur Bispo do Rosário. Internado durante 40 anos na Colônia Juliano Moreira, como se sabe, construiu uma imensa obra, na qual reproduzia e representava tudo o que havia no mundo para apresentar a Deus. Bispo fazia o inventário do universo, para produzir a si mesmo como sujeito. Para ele a representação das coisas para apresentá-las a Deus era correlata de uma transformação de si mesmo. “Essa miniaturas que eu fiz permitem a minha transformação”. “Eu devo estar pronto daqui a uns seis ou cinco meses. Dentro dessa representação aqui”. Em um dos seus panos, escreveu: EU PRECISO DESTAS PALAVRAS. ESCRITA. Para Bispo o delírio foi insuficiente para conter o gozo que o invadia. Essa tarefa teve de ser completada pelo trabalho concreto de escrever com linha e agulha o nome das coisas, reproduzi-las, reuni-las e classificá-las.
A teoria psicanalítica afirma ser necessário à constituição de um sujeito na psicose, à produção de um elemento (uma significação delirante, um labor, uma identidade imaginária) que sirva como organizador da condição subjetiva do paciente. Mas é impossível determinar diante mão o que funcionará como ponto de ancoragem, ponto de referenciação a partir do qual o paciente poderá se produzir como sujeito: o trabalho do próprio delírio, como no caso Schreber; a atividade laboral/criacionista ininterrupta, como foi o caso de Bispo. Em qualquer caso é dada ao psicótico a oportunidade de fazer o trabalho de circunscrever os termos de sua existência.


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