sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS EM SAÚDE MENTAL: OBSTÁCULOS E DESAFIOS

Aline Drummond de Mendonça

“Não permitir que as residências terapêuticas se transformem em lugares sem recuperação social (mini-manicômios).”[1]

A implantação efetiva da Reforma Psiquiátrica requer o desenvolvimento de programas de desinstitucionalização das pessoas há longo tempo internadas, que visem os processos de autonomia, de construção dos direitos de cidadania e de novas possibilidades de vida para todos e que garantam o acesso, o acolhimento, a responsabilização e a produção de novas formas de cuidado do sofrimento. Neste processo é fundamental a criação de Serviços Residenciais Terapêuticos com capacidades e recursos para desenvolver o acompanhamento de usuários objetivando a inserção familiar e social.
Desta forma, a desinstitucionalização e efetiva reintegração de doentes mentais graves na comunidade é uma tarefa a que o SUS vem se dedicando com especial empenho nos últimos anos.
“Nós devemos entender aqui que a desinstitucionalização não seja idêntica à simples abertura das portas do manicômio. A luta que se desenvolve é contra uma instituição manicomial ou um manicomialismo. Mais propriamente falando, é contra uma lógica interna à instituição que tende à sua própria auto-reprodução, anulando os atores enquanto sujeitos de transformação. Sem essa clareza, corre-se o risco de que, mesmo um serviço extra hospitalar, reproduza-se a mesma lógica manicomial, que se criem serviços modernos, mas que continuam a ser instituições da violência, locais de exclusão e segregação social. Basaglia, ao se referir às instituições, dizia que abrir uma instituição, o manicômio, não é apenas abrir as portas, mas abrir a nossa cabeça em confronto com aquele que nos procura. Isso faz com que se modifique a própria relação técnico-usuário, isto é, um técnico não tem mais respostas institucionais prontas a priori, mas deve criar alternativas concretas dentro da própria relação tensa, de sujeito a sujeito, de cidadão a cidadão, entre aquele que procura um serviço e aquele técnico que recebe uma demanda."[2]
Sabemos que as residências terapêuticas constituem alternativas às internações, porém, para que essas moradias não sejam apenas a simples substituições geográficas dos leitos hospitalares com a manutenção de práticas e comportamentos manicomiais, para que este risco possa ser evitado, mesmo sabendo que não há receitas prontas e definitivas, penso que talvez a especificidade do nosso exercício profissional seja produzir certa disposição para construir problemas nos espaços por onde circulamos, nos coletivos de trabalho, entre usuários e para nós mesmos. Que nosso foco seja interrogar sobre como ocupamos as cenas, como as produzimos: enquanto interditores ou produtores de vida? Que nosso agir seja lutar contra o ímpeto da prescrição de modos de existir no mundo, o que nos faz técnicos da correção e da modelagem.
“As residências terapêuticas, digamos, são uma espécie de calcanhar-de-aquiles do processo da reforma. É muito difícil implantá-las. Há uma resistência muito grande. Há uma dificuldade real e concreta de se criar esse dispositivo. Temos apenas dois mil pacientes, dos quais setecentos e cinqüenta estão no estado de São Paulo. No resto do Brasil há mil e trezentos pacientes em residências terapêuticas. É um número bastante baixo, se considerarmos que temos cinqüenta e cinco mil pacientes internados. Muitos desses pacientes que precisam da residência terapêutica vão sair da sua vida no hospital psiquiátrico. É interessante, pois, cada vez que se cria uma vaga de residência terapêutica, é fechado, no sistema, um leito. Fazendo assim, vamos reduzindo os leitos criteriosamente. Criou-se o serviço, a residência, bloqueia-se aquela vaga e não existe mais aquela vaga no hospital psiquiátrico.”[3]
“Tenho observado que os órgãos de representação da categoria médica e dos psiquiatras começam a resistir à idéia da reforma psiquiátrica. Isso me parece totalmente equivocado. Os profissionais comprometidos com a boa prática médica não podem esquecer que, certa vez, se aliaram aos proprietários de hospitais e se tornaram subempregados, funcionários desqualificados, mal pagos e desrespeitados. Não podem esquecer também que se aliaram, outra vez, aos empresários de seguro-saúde, e deles se tornaram escravos, sem autonomia profissional e sem controle sobre as possibilidades terapêuticas. Em que pesem todos os problemas e limitações, é no SUS que ainda podemos, não apenas médicos, mas todos os profissionais do setor, realizar as possibilidades reais da saúde em nosso país. Seja porque o SUS é o maior e mais promissor mercado de trabalho nessa área (e não se iludam quanto a isso), seja porque é o mais democrático e inclusivo sistema de saúde público do mundo.”[4]
Assim, torna-se fundamental refletirmos os motivos subjacentes às dificuldades de implementação das residências terapêuticas. Não é apenas nos níveis administrativos, financeiro e organizacional que encontramos resistência à reforma psiquiátrica.
“Mas, além desses, e de um modo muito mais sutil e refinado, se escancaram as nossas precariedades pessoais, teóricas, práticas, para lidar com uma demanda oceânica e desconcertante, que habitualmente impõe a escolha dilemática entre tolher, aplacar, ocultar, como fazem as instituições totais para administrar o incômodo, ou, de um modo, partir para um desafio incomensurável de facilitar produção de subjetividade com o peso do desconcerto, da provisoriedade das teorias, do desenclausuramento de si próprio para acompanhar os caminhos do outro.”[5]

[1] Relatório do VII Encontro Nacional de Usuários e Familiares do Movimento da Luta Antimanicomial de 18 à 21/09/2003, Xerém – Duque de Caxias, RJ.
[2] Tykanori, Roberto – “Uma experiência pioneira: a reforma psiquiátrica italiana” in Saúde Mental e Cidadania; Edições Mandacaru, Plenário de Trabalhadores em Saúde Mental do Estado de São Paulo.
[3] Delgado, Pedro Gabriel Godinho – “Protagonismo Social da Psicologia na Reforma Psiquiátrica” in Relatório do II Seminário Nacional de Psicologia e Políticas Públicas, de 28 à 31/05/2003 Espaço Cultural João Pessoa, PB.
[4] Amarante, Paulo – “Rumo ao fim dos manicômios” in Revista Mente e Cérebro, setembro de 2006, pág. 35.
[5] Pitta, Ana Maria Fernandes – “Cuidando de Psicóticos” in clínica da psicose: um projeto na rede pública Te Cora Editora: Instituto Franco Basaglia, 1994; pág. 165-66.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

DIA 18 DE MAIO DIA NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL
Aline Drummond de Mendonça

Cabe aqui um informe histórico – esta data foi escolhida no congresso de trabalhadores de saúde mental em 1987 em Bauru, SP.
Neste congresso além das denúncias dos horrores de certos manicômios, dos abusos de tantas práticas vigentes na saúde mental, ali se sustentou pela primeira vez à constatação clara de que a técnica seja ela qual for não poderá jamais deter um lugar privilegiado no encontro entre loucura-cultura.
A luta antimanicomial é uma luta da sociedade mesma, que já não pode mais delegar a técnica à gestão da convivência com a loucura. A sociedade pode e deve sempre contar com o auxilio da ciência, mas a sociedade perde autonomia sempre quando coloca a ciência nos lugares políticos de decisão.
Assim, quando optamos por defender uma sociedade sem manicômios, vivemos as conseqüências desta decisão e a primeira é a de que o movimento deixa de ser o movimento dos trabalhadores de saúde mental para tornar-se um movimento social, ou seja, aberto a todos os interessados em repensar as formas e modos de presença da loucura.
Dessa forma, quando definimos a luta antimanicomial como movimento social, implicamos o corpo social neste processo. E por assim pensar, temos conduzido, no Brasil, uma longa luta pela extinção não só dos hospitais psiquiátricos, mas estendemos/entendemos a nossa luta a todas as formas sociais derivadas ou vinculadas à ordem manicomial.
Como sabemos, os manicômios são lugares não só no sentido geográfico destinados à loucura fora-da-cidade, mas a cima de tudo no sentido político, pois para lá vão todos aqueles declarados incapazes de decisão e escolha, incapazes de responder em seu próprio nome.
Rejeitamos com veemência todas as instituições sociais que discriminam e excluem e assim diante da ação covarde de tais instituições, prossegue nossa luta: POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS.
A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA

Aline Drummond de Mendonça


“Sufoco da vida
Estou vivendo no mundo do hospital
Tomando remédio de psiquiatria mental
Haldol, Diazepan, Rohypnol, Prometazina...
Meu médico não sabe como me tornar um cara normal

Me amarram, me aplicam, me sufocam num quarto trancado
Socorro! Sou um cara Normal asfixiado.
Minha mãe, meu irmão, minha tia, me encheram de drogas
De Levomepromazina.

Ai, ai, ai que sufoco da vida
Estou cansado de tanta Levomepromazina”[1]

A Antipsiquiatria e a Reforma Psiquiátrica Italiana construíram um modelo de cuidado que não conduz a hospitalização e à sedação para o controle e o silenciamento dos sintomas, mas conduz a desinstitucionalização.
A desinstitucionalização, em primeiro lugar, aspira-se a uma transformação no âmbito da sociedade, isto é, na forma com que a sociedade lida com a loucura, e não apenas meramente a uma luta para a transformação interna do manicômio ou a desospitalização.
Em outras palavras, a desinstitucionalização ultrapassa tanto as concepções de reformar, humanizar os manicômios, quanto às concepções de desospitalização para reportar ao sentido da desconstrução do saber psiquiátrico (desconstrução do conceito de doença mental, das técnicas e dos técnicos) que, digamos e convenhamos, é falido nas suas pretensões terapêuticas, mais ainda assim, é produtor inquestionável de um saber/verdade sobre o louco e a loucura.
É essa construção que a psiquiatria elabora sobre o louco que a sociedade assimila e reproduz e, assim, dessa forma a instituição psiquiátrica extrapola os muros dos hospícios e torna-se uma das instâncias reguladoras do espaço social.
Com base no que se supõe ser o louco, a loucura na nossa sociedade é sinônimo de demência, agressividade, insensatez, periculosidade, irresponsabilidade, termos que deixam bem claro que negam o próprio sofrimento, o sujeito, a pessoa. Ainda hoje, e que nos deixa muito tristes, constatamos que a doença mental é determinada pelo conceito de periculosidade, irrecuperabilidade e incompreensibilidade.
Assim, a psiquiatria não se relaciona com o louco, mas com o doente, e o louco, não se relaciona mais consigo mesmo nem com o outro, mas com a doença que o define. Então, o processo de desinstitucionalização deve ser realizado com o objetivo de possibilitar emergir o sujeito, seus desejos e sentimentos que foram negados pela série de pré-conceitos científicos fundados no conceito de doença mental.
Logo, podemos afirmar que, a desinstitucionalização é um processo de desconstrução dos saberes que gravitam em torno do conceito de doença mental e de suas práticas e também a invenção de novas formas de lidar, não mais com a doença, mas com o sujeito doente.
Desinstitucionalizar a doença mental para aprendê-la de outra forma, conferir um outro destino à existência-sofrimento em relação ao corpo social. O dispositivo da desinstitucionalização ou dispositivo da saúde mental é a invenção, a criação de um espaço de produção de novas subjetividades, de sociabilidade, de produção de seus desejos, seus projetos, sua história, enfim, da manifestação da real existência da pessoa. O trabalho de desinstitucionalização está voltado para reconstruir as pessoas como atores sociais, para impedir-lhes o sufocamento sob o papel, a identidade estereotipada e introjetada que se sobrepõe à dos doentes.
Podemos concluir que o primeiro passo da desinstitucionalização[2] consiste em desconstruir a idéia da doença que precisa de cura, em torno do qual se legitima o “isolamento”, a medicalização, a tutela e a desqualificação do sujeito. Onde este, passa a ser a história de uma doença. O segundo passo da desinstitucionalização é o envolver e mobilizar, nesse processo, estes mesmos sujeitos enquanto atores sociais, enquanto protagonistas de suas histórias, enfim, a desinstitucionalização é um processo inventando novas possibilidades de inscrição dos sujeitos no corpo social.
O objetivo da desinstitucionalização da loucura é criar um espaço social para o louco, porque sabemos que nossa sociedade conduz à discriminação e não a solidariedade. Então, nós profissionais da saúde precisamos construir um espaço social numa sociedade que não costuma abrir espaço social para pessoas que são diferentes.
Logo, a nossa luta se trava no campo da cultura, do imaginário social, no campo das representações, preconceitos e estigmas que vão inspirar legitimar ou mesmo serem coniventes com práticas de exclusão e de eliminação das diferenças.
Sendo assim, na desinstitucionalização da loucura trata-se de admitir a pluralidade de sujeitos, com suas diversidades e diferenças; trata-se, ainda, de um processo de construção de cidadania para que o louco não seja excluído, violentado, discriminado, mas que possa ser acolhido em seu sofrimento.
Enfim, trata-se de trabalhar para que o louco seja um sujeito de desejos e projetos.



[1] “Sufoco da vida” in CD do Harmonia enlouquece.
[2] Amarante, Paulo – O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de janeiro: Editora Fiocruz, 1996, pág, 105.
STELA DO PATROCÍNIO – UMA TRAJETÓRIA POÉTICA EM UMA INSTITUIÇÃO PSIQUIÁTRICA

Aline Drummond de Mendonça


Foucault no início dos anos 60 escreveu a História da loucura livro esse que reflete e resiste ao gigantesco aprisionamento moral que constitui o monopólio da razão sobre a loucura. Nesse livro ele inicia uma investigação que teve grande importância teórica e política em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil, orientando nossos estudos sobre o nascimento e as transformações dos saberes sobre a doença mental e a anormalidade e principalmente, fundamentando nossas lutas políticas por soluções alternativas à reclusão asilar.
A História da loucura trás duas descobertas importantes: primeiro, antes de se tornar doença mental a loucura era apenas doença e como doença estava integrada a racionalidade médica própria da época clássica, que não distinguia o físico e o mental; segundo, não havia hospital psiquiátrico, o que havia eram instituições assistenciais que nada tem haver com a doença e recuperação do louco, eram estabelecimentos de exclusão dos indivíduos considerados perigosos porque “desrazoados”.
A psiquiatria tem aí suas condições antecedentes históricas nesse processo de dominação onde suas condições são mais institucionais do que teóricas. Com isso estamos afirmando que: a loucura só se tornou objeto de conhecimento científico na modernidade, porque foi antes objeto de exclusão moral e social no “grande enclausuramento” clássico como “desrazão”, ausência de razão.
É preciso tornar visível o jogo moral que a razão oculta em sua aparente busca da verdade. O que a razão quer é, desde seu nascimento platônico, rejeitar uma parte da vida, a que muda, a que delira. O que a razão quer é produzir um mundo de identidades e verdades, um mundo previsível e claro. Em conseqüência, tudo o que é escuro, imprevisto, móvel é excluído.
É nesse espaço que se insere a loucura e ousaria dizer que Stela se sustenta em uma ordenação delirante, uma ordenação móvel, fundada na afirmação de sua própria fragmentação. A palavra lhe parecia muito íntima, muito próxima, não a palavra da comunicação, do “rebanho” como diria Nietzsche, mas a palavra deslocada da interioridade e da subjetividade cotidianas.
Stela foi capaz de lançar um olhar sobre a condição asilar, falar de sua situação no hospital, se deparar, enxergar, localizar no hospital sua “doença”, sua prisão, sua condição ali : “ficar pastando”. Esta lucidez depois de quase trinta anos neste espaço asilar de absoluta uniformidade, é uma das coisas que mais me impressiona em Stela do Patrocínio.
A fala de Stela é valiosa antes de tudo pelo que diz : ela registra um lugar, uma condição, a da internação em regime fechado, mas é também muito valiosa pelo caráter vitorioso de uma conquista da exterioridade : ler e ouvir Stela é integrá-la no discurso que um dia a excluiu, a de um discurso que ultrapassou os muros da instituição.
Todos nós sabemos o que são estes muros e o que significa ultrapassa-los, principalmente se utilizando da palavra que foi o primeiro domínio de exclusão da loucura.
Assim, que a fala do mundo seja acrescida da fala de Stela.

“Eu estava com saúde
Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
Me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente”

“Eu vim do Pronto Socorro do Rio de janeiro
Onde a alimentação era eletrochoque, injeção e remédio
E era um banho de chuveiro, uma bandeja de alimentação
E a viagem sem eu saber para onde ia
Vim parar aqui nessa obra, nessa construção nova”

“ O remédio que eu tomo me faz passar mal
E eu não gosto de tomar remédio pra ficar passando mal
Eu ando um pouquinho, cambaleio, fico
Cambaleando
Quase levo um tombo
E se eu levo tombo eu levanto
Ando mais um pouquinho, torno a cair”

“Estar internada é ficar todo dia presa
Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo portão
Maria do Socorro não deixa eu passar pelo portão
Seu Nelson também não deixa eu passar lá no portão
Eu estou aqui há vinte e cinco anos ou mais”

“Aqui no hospital ninguém pensa
Não tem nenhum que pense
Eles vivem sem pensar
Comem bebem fumam
No dia seguinte querem saber
De recontinuar o dia que passou
Mas não tem ninguém que pense
E trabalhe pela inteligência”

“No céu
Me disseram que deus mora no céu
No céu na terra em toda parte
Mas não sei se ele está em mim
Ou se ele não esta
Eu sei que estou passando mal de boca
Passando muita fome comendo mal
E passando mal de boca
Me alimentando mal comendo mal
Passando muita fome
Sofrendo da cabeça
Sofrendo como doente mental
E no presídio de mulheres
Cumprindo prisão perpétua
Correndo um processo
Sendo processada”

“Perdi o gosto o prazer o desejo a vontade o querer”



Estamos com esse trabalho sustentando que precisamos romper com os limites instaurados pela razão e nos permitir a experiência de ouvir as vozes dos “mal-ditos”.
“A percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual se denuncia uma fala como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a um lugar na história.”
Com isso somos levados hoje a fazer uma análise crítica a respeito da situação dos loucos desde o classicismo e negar que a medicalização ou a psicologização da loucura seja o resultado de um progresso que teria nos levado ao desvelamento de sua essência ou de seu tratamento.


Bibliografia:

Foucault, Michel – Ditos e Escritos I – Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
______________ - História da Loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1993.
QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO SOBRE AS DOENÇAS MENTAIS? Será que a hospitalização transforma as doenças mentais?

Aline Drummond de Mendonça

Estar “perdendo a cabeça” - significação socialmente imposta de alguns sintomas tais como ouvir vozes, perder a orientação espacial e temporal, sentir-se perseguido - ou o controle de si mesmos parece ser uma das coisas mais amedrontadoras que podem ocorrer ao eu em nossa sociedade.
Como aceitar essa interpretação desintegradora de si mesmo? O que fazer com a angústia resultante dessa percepção? De que forma respondemos ao sofrimento psíquico?
A internação psiquiátrica é a nossa resposta. Internar por já não ser mais aceito na sociedade externa, devido ao fato de ter ultrapassado o limite da norma fixado por ela. Portanto, a internação acena como uma possibilidade de viver na “norma”, no “bem estar” e numa crença no caráter médico dos hospitais, onde a hospitalização é tida como uma “solução boa”, afinal de contas, é uma ação em nome da ciência. Como nos fala Lima Barreto:
“ disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospício.”[1]
Essa crença não leva em conta que a hospitalização pode piorar a situação, o sofrimento do paciente, uma vez que a internação confirma o que até então fora um problema da experiência íntima do eu. Mais uma vez, nos lembra Lima Barreto:
“Esta passagem várias vezes no hospício e outros hospitais deu-me não sei que dolorosa angústia de viver que eu me parece ser sem remédio a minha dor.”[2]
Sabemos que um conjunto importante de circunstâncias fazem com que a pessoa fuja ao seu destino, mas quando essa pessoa é internada, outro conjunto de circunstâncias ajuda a determinar o seu destino social, a vida dessa pessoa. Dizemos com Goffman (1961), que os doentes mentais internados sofrem, não de doença mental, mas de outras circunstâncias. As circunstâncias que participam os agentes - a pessoa mais próxima, o denunciante e os mediadores (polícia, clero, psiquiatras, advogados, assistentes sociais, professores e assim por diante) - na sua transição da pessoa do status civil para o de paciente, isto é, em sua passagem do status civil para o internado despojado de quase tudo. Evoco novamente Lima Barreto:
“ Como é que eu, em vinte e quatro horas, deixava de ser um funcionário do Estado, com ficha na sociedade e lugar no orçamento, para ser um mendigo sem eira nem beira, atirado para ali que nem um desclassificado?”[3]
“Pela primeira vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o desgraçado.Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu corpo, era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia”[4]
Aqui, a questão é saber como se consegue esse despojamento, essa expropriação?
Segundo Foucault (1975), a Disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Donde, o hospital constituirá o local adequado a esse regime disciplinar.
A vida dos internados é regida por autoritarismo, limites forçados e burocracia. O ritmo da vida dos asilos é marcado por regras forçadas e mortificações não levando em conta o homem no seu livre situar-se no mundo. O hospital o impede de continuar a buscar o seu lugar que ao ditar regras, exigências organizacionais não levam em conta o indivíduo singular e as particularidades de cada um.
A hospitalização, o internamento , essa complexa organização do espaço fechado, esse sistema de isolamento e vigilância, aniquila a individualidade e a liberdade do doente, ou seja, viola o projeto individual.
A individualidade é perdida e oprimida pelo poder institucionalizante que se articula a vida do asilo, isto é, o doente ao entrar no asilo depara-se com as regras e estruturas que o impelem a objetificar-se com elas.
Identifica-se com o espaço limitado, isto é, com a privação, com a perda de sua liberdade que corresponde à imagem do homem sem objetivo, sem futuro, sem interesse, enfim, institucionalizado. Donde a apatia, o desinteresse, a deterioração psíquica resulta mais da institucionalização que da doença original, assim, como nos fala Basaglia:
“Se ele apenas começar a suspeitar que a realidade enferma à sua frente - internados que não falam porque ninguém os escuta; que não caminham porque não sabem aonde ir; que babam porque não existe uma razão para não fazer isso, porque não existe um objetivo, um fim pelo qual faça sentido resistir à tentação de deixar-se viver e vegetar - não é fruto somente de uma doença, mas de uma violência perpetrada em todos os níveis, essa realidade não pode deixar de subverter-se aos seus olhos, envolvendo-o em sua parte de responsabilidade e envolvendo os“sãos” na deles”.[5]
O doente mental é uma realidade fabricada pela instituição psiquiátrica que além de excluir, reprimir, censurar, na verdade produz; produz realidade; produz o indivíduo e o conhecimento que dele pode ter; produz “a mais triste moléstia da humanidade, aquela que nos faz outro”.[6]
Não se deve perder de vista que os hospitais psiquiátricos não só espelha a sociedade, como está profundamente a ela vinculado, ou seja, a sociedade constrói a imagem social da doença mental que se revelará determinante no desenvolvimento da própria doença. Imagem esta que pouco tem a ver com a própria doença, mas sim com a exclusão social, com o encarceramento. Cabendo, então, ao hospital psiquiátrico à gestão dessa exclusão e aos médicos psiquiatras converter em patologia, isto é, sob o rótulo de doença, tudo aquilo que é sinal de uma vida que não se pode viver.
Donde podemos concluir, a instituição psiquiátrica é um saber totalmente comprometido com a necessidade de exclusão das pessoas, do delegatório que a sociedade dá ao psiquiatra de excluir e segregar as pessoas.
É preciso, hoje mais do que ontem, ter a lucidez de Artaud para denunciar, para dizer: “a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras. Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis”.[7]


Referências Bibliográficas:

Amarante, Paulo – Saúde Mental, políticas e instituições : programa de educação a distância. Rio de Janeiro : FIOTEC/FIOCRUZ , 2003.
Artaud, Antonin – Os Escritos de Antonin Artaud – Porto Alegre: L&PM editores, 1986.
Barreto, Lima – O cemitério dos vivos – São Paulo:Editora Planeta do Brasil; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.
Basaglia, Franco – Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. – Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
Foucault, Michel – O nascimento do hospital. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
______________ - Vigiar e punir: o nascimento da prisão - Petrópolis, Vozes, 1987.
Goffman, Erving – Manicômios, Prisões e Conventos – São Paulo: Perspectiva, 2005.


[1] Barreto, Lima – “Diário do hospício” in O cemitério dos vivos; pág, 22.
[2] Idem; pág, 60.
[3] Barreto, Lima – O cemitério dos vivos; pág, 184.
[4] Idem; pág, 230.
[5] Basaglia, Franco – “Introdução a Asylums”; pág, 142.
[6] Barreto, Lima – O cemitério dos vivos; pág, 200
[7] Artaud, Antonin – “Van Gogh: o suicidado pela sociedade”; pág, 133.
PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL

Aline Drummond de Mendonça


Saúde mental – quantas vezes ouvimos algum profissional dizer que trabalha na saúde mental? Ou quantas vezes ouvimos um amigo falar que tem interesse em cursar a disciplina de saúde mental que está sendo nesse semestre oferecida na universidade?
O que ele está dizendo com isso? Mas o que é Saúde mental?
Podemos extrair um primeiro sentido da expressão saúde mental a partir da Organização Mundial da Saúde que considera que saúde é o “estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Poderíamos admitir que com esta definição fosse muito difícil estabelecer - o que é este estado de completo bem-estar... Questiono se há alguém assim!
Vamos prosseguir com nossas reflexões. Anteriormente, perguntei se quando algum profissional nos diz que trabalha na saúde mental, o que ele está dizendo com isso? Ora muitos dirão que pergunta óbvia! Ele está dizendo que trabalha com questões relacionadas à saúde mental das pessoas! Ponto final nessa conversa, já está respondido.
Mas eu insisto nessa questão por que até muito pouco tempo atrás trabalhar na saúde mental era o mesmo que trabalhar em hospícios, em manicômios, em ambulatórios e emergências de crise psiquiátrica. Era trabalhar com loucos agressivos, em ambientes carcerários, desumanos, de isolamento e segregação.
Significava dizer que trabalhava com doenças mentais – mas o que é doença mental? È o oposto de saúde mental? Será que encontramos agora um outro sentido da expressão saúde mental?
Entretanto, parece óbvio, mas é muito difícil definir hoje o que vem a ser saúde mental. Sabe por quê? Por que a saúde mental não se baseia em apenas um tipo de conhecimento, a psiquiatria e muito menos é exercida por apenas um profissional o psiquiatra.
Quando nos referirmos hoje à saúde mental, está presente além da psiquiatria outros saberes tais como a neurologia e as neurociências, a psicologia e a psicanálise.
Para dar prosseguimento à nossa discussão é necessário revisitar o pai da psiquiatria – o médico Philippe Pinel – pois suas idéias e feitos ainda hoje repercutem no campo da saúde mental.
Pinel ao escrever o Tratado Médico-Filosófico sobre Alienação Mental ou a Mania, o primeiro livro da disciplina que futuramente viria a ser conhecida como psiquiatria, lançou as bases do que ficou conhecido como a síntese alienista. Elaborou uma primeira classificação das enfermidades mentais, consolidou o conceito de alienação mental e a profissão do alienista, fundou os primeiros hospitais psiquiátricos, determinou o princípio do isolamento para os alienados e instaurou o primeiro modelo de terapêutica ao introduzir o tratamento moral.
Quanta coisa! É, mas vamos ver mais de perto esses conceitos e estratégias.
Vamos começar pelo conceito de alienação mental. Mas o que significa alienação?
Alienação era conceituada como um distúrbio das paixões, capaz de produzir desarmonia na mente e na possibilidade objetiva do indivíduo perceber a realidade.
No sentido mais comum do termo, alienado é alguém “de fora”, estar fora da realidade, fora de si, sem o controle de suas próprias vontades e desejos. Fora do mundo, de outro mundo, estrangeiro.
Na medida em que alguém fosse classificado como alienado, a partir dessa conceituação – poderia representar um sério perigo à sociedade, por perder o juízo, ou a capacidade de discernimento entre o erro e a realidade, logo, podemos afirmar que o conceito de alienação mental nasce associado à idéia de periculosidade e que ao longo de todos estes anos esse conceito contribuiu para produzir uma atitude social de medo e discriminação para as pessoas identificadas como tais. (A exemplo de Emil Kraepelin – considerado o pai da clínica psiquiátrica moderna – já em sua primeira lição em 1901, afirma que “todo alienado constitui de algum modo um perigo para seus próximos, porém em especial para si mesmo”).
Mas vamos mais adiante – o primeiro passo para o tratamento seria o isolamento do mundo exterior, hospitalização integral. Por quê? Por que o tratamento moral por pretender-se instaurador de uma organização no âmbito das paixões descontroladas do alienado e consistir na soma de princípios e medidas (impunha regras, condutas, horários) que impostos aos alienados, pretendiam reeducar a mente, afastar os delírios e ilusões e chamar a consciência à realidade. Logo, o hospital, enquanto, instituição disciplinar seria ele próprio, uma instituição terapêutica.
Dentre as mais importantes estratégias do tratamento moral estava o que Pinel denominava de trabalho terapêutico. Esse trabalho seria um meio de reeducação das mentes desregradas e das paixões incontroláveis. (No início do séc. XX, a exemplo de Waldemar de Almeida – o alienista brasileiro, considerava que o trabalho seria o meio terapêutico mais precioso, pois estimulava a vontade e a energia e consolidava a resistência cerebral tendendo fazer desaparecer os vestígios do delírio).
Assim, o modelo psiquiátrico, teve como uma de suas características principais um sistema terapêutico baseado na hospitalização. Como este modelo pressupõe um paciente portador de um distúrbio que lhe rouba a razão, um insano, um insensato, incapaz, irresponsável (inclusive a legislação considera o louco irresponsável civil), o sistema hospitalar psiquiátrico se aproxima muito das instituições carcerárias, correcionais, penitenciárias. Portanto, um sistema fundado na vigilância, no controle, na disciplina. E como não poderia deixar de ser, um sistema com dispositivos de punição e repressão.
Fomos atravessados por 2 grandes guerras mundiais e que fizeram com que a sociedade passasse a refletir tanto sobre a crueldade quanto a solidariedade existentes entre os homens e assim logo após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade dirigiu seus olhares para os hospícios e descobriu que as condições de vida oferecidas aos pacientes psiquiátricos ali internados em nada se diferenciavam daquelas do campo de concentração. Assim, nasceram as primeiras reformas psiquiátricas.
Foram muitas as experiências de reformas (Comunidade Terapêutica, Psicoterapia Institucional, Psiquiatria de Setor, Psiquiatria Preventiva, Antipsiquiatria e Psiquiatria Democrática) que aconteceram em vários países (Inglaterra, França Estados Unidos e Itália) e sabemos que estas reformas permaneceram influenciando as experiências contemporâneas.

Psiquiatria clássica – objeto: doença Mental – objetivo: curar a doença – lugar de tratamento: o asilo.
Modelo manicomial: modelo realizado em instituições fechadas, baseado na custódia, tutela, vigilância e disciplina, que promove o isolamento e segregação das pessoas.

Comunidade Terapêutica e Psicoterapia Institucional – objeto: doença Mental e a Instituição – objetivo: curar a doença e tratar a instituição – lugar de tratamento: o asilo.
Acredita na instituição psiquiátrica como lugar de tratamento. Crença de que o manicômio é uma instituição de cura, assim, tornar-se urgente resgatar esse caráter positivo da instituição através de uma reforma interna da organização psiquiátrica.

Psiquiatria de Setor e Psiquiatria Preventiva – objeto: a Saúde Mental – o objetivo: promover a saúde mental e prevenir a doença mental – lugar de tratamento: a comunidade.
Um novo objeto: a Saúde Mental, antes a psiquiatria era preocupada somente com a doença mental e em curar os doentes mentais, agora a preocupação é levar a saúde mental para toda a comunidade.
Promover a saúde mental/Prevenir a doença mental.
A Psiquiatria Preventiva foi desenvolvida nos Estados Unidos e suas bases teóricas foram explicitadas no livro Princípios de Psiquiatria Preventiva de Gerald Caplan, considerado o fundador desta corrente. Para Caplan todas as doenças mentais poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente. Na medida em que as doenças mentais eram entendidas como sinônimos de desordens, julgava-se poder prevenir e erradicar os male da sociedade.
Para ser possível construir um modelo que evitasse os episódios de doença mental seria indispensável saber quais os fatores que influenciavam o estado de saúde mental de uma população. Fundamentado no modelo sociológico da “adaptação/desadaptação” (como critério de distinção do normal e do patológico, no qual se entendia o comportamento socialmente inadaptado como sinônimo de comportamento eventualmente inadequado), pressupunha-se que a doença mental seria conseqüência de um processo de inadaptação ou desajustamento. Retomando o equilíbrio, se alcançaria a adaptação e o ajustamento e enfim a saúde mental. Donde doença mental seria o desequilíbrio, a desadaptação e o desajustamento e a Saúde Mental o equilíbrio, a adaptação e o ajustamento.


Antipsiquiatria e Psiquiatria Democrática – Voltadas para idéia de superação do aparato manicomial, entendido não apenas como a estrutura física do hospício, mas como conjunto de saberes e práticas, científicas e sociais, legislativas e jurídicas, que fundamentam a existência de um lugar de isolamento e segregação e patologização da experiência humana.
Franco Basaglia o mais expressivo protagonista da Psiquiatria Democrática Italiana considerava que a psiquiatria tinha um mal obscuro por haver separado um objeto fictício, a doença da existência global e complexa dos sujeitos e do corpo social. A psiquiatria passou a se ocupar da doença e não do sujeito que a vivencia. Os tratados de psiquiatria ocuparam-se das doenças e esqueceram-se dos sujeitos. Enfim, a psiquiatria havia colocado o sujeito entre parênteses para ocupar-se da doença, a proposta de Basaglia foi de colocar “a doença entre parênteses” para que fosse possível se ocupar do sujeito em sua experiência. Na medida em que a doença é posta entre parênteses, aparecem os sujeitos que estavam neutralizados, invisíveis, opacos, reduzidos a meros sintomas de uma doença abstrata.

Assim, as grandes experiências de reformas psiquiátricas obrigaram a psiquiatria a experimentar novas definições de doença mental e mais recentemente a psiquiatria optou por adotar o termo transtorno mental – os portadores de transtorno mental. Então uma pessoa com transtorno mental é uma pessoa transtornada, que é o mesmo que possessa!




Já a psicanálise localiza o sujeito justamente nas manifestações que, antes de Freud, eram vistas como afastamento da verdade e da razão, empecilhos à plena realização do sujeito – na neurose, as formações do inconsciente, e, na psicose, o delírio.
Assim, ao localizar o sujeito no delírio, a psicanálise redefine o campo de abordagem da loucura.
Na leitura freudiana o delírio é uma forma particular de o sujeito dizer a verdade, mas para Pinel, era ao contrário, era um afastamento da verdade, da verdade da razão. Dessa forma, as manifestações da loucura, como as alucinações e os delírios, eram associadas à perda patológica da razão e ao afastamento da realidade. Assim, antes de Freud as alucinações e os delírios eram tomados no registro do erro (o delírio é um erro da razão), mas a partir de Freud todos esses fenômenos são índices do sujeito e portadores de verdade. A indicação de Freud, portanto, é de que o sujeito deve ser buscado justamente em sua produção psicótica, e não em sua correção em prol de uma percepção correta da realidade. Nesse sentido, o avanço de Freud em relação à Pinel foi o de indicar que a cura não está na correção da loucura pela razão ou pela realidade, mas na própria construção delirante. O delírio não é patológico, mas uma tentativa de cura, o maior legado de Freud com relação à psicose foi essa assunção: o delírio é o trabalho pelo qual o psicótico reconstrói o mundo de maneira a poder viver nele. Logo, o delírio é a tentativa de cura. O curável na psicose é equivalente a tentar barrar, delimitar, temperar, apaziguar o gozo que invade o sujeito.
Como sabemos na análise de Freud, Schreber em sua agudização mais grave e duradoura, durante a qual ficou nove anos internado, evoluiu de uma situação de intensa desorganização psicótica para uma situação de estabilidade. Essa evolução acompanhou a modificação de seu delírio, cujo elemento central era o de que ele estava sendo transformado em mulher. Inicialmente, essa transformação era obra de seu médico, com finalidades escusas, e era inaceitável. Na forma final do delírio, era Deus quem o transformava em mulher, a fim de procriar com ele uma nova raça de homens. Foi o trabalho continuado de elaboração delirante que modificou o que antes era maldade perpetrada contra ele em uma iniciativa divina, harmônica com a ordem das coisas e com seu bem estar pessoal.
Foi com o trabalho de seus delírios que Schreber reconstruiu o mundo de maneira a poder viver nele mais uma vez. Cabe aqui uma pergunta – na expressão “trabalho do delírio” de que trabalho se trata? O trabalho de Schreber consiste em reinterpretar o Outro que o invade. A solução delirante faz barreira à terrível invasão do Outro. Se o médico, como foi dito anteriormente, invadia o corpo de Schreber na forma de gozo sexual, a significação “mulher de Deus” circunscreve esse gozo, torna-o aceitável para o sujeito. Reconstruir o mundo de modo a poder viver nele é o mesmo que encontrar no mundo um lugar de sujeito.
Na herança da proposição freudiana – o delírio é a cura – propõe-se que a cura da psicose não está na correção da produção psicótica pela realidade, mas em um trabalho que se faz na lógica interna dessa produção. O sujeito da psicanálise está em uma posição de trabalho. Para além ou aquém da perspectiva psicossocial, sem dúvida muito importante, a psicanálise visa a que o sujeito possa tomar aquilo que o domina e fazer disso sua inscrição de sujeito. O sujeito da psicanálise se produz quando convidado a falar sobre sua condição, produz seu próprio balizamento no real.
Assim, a posição na qual o analista recebe a produção de um psicótico não é a de referi-la a esquemas prévios e almejados de organização, cura, estabilização, aproximação paulatina de uma realidade. É a de sustentar a oferta e as condições para que o psicótico trabalhe na sua psicose.
Se a solução de Schreber foi o trabalho do delírio, Lacan mostrou que essa não é a única via de produção de sujeito na psicose, isto é, que a produção psicótica pela qual o sujeito encontra um lugar não se reduz ao delírio. Em “O seminário, livro 23: o sintoma”, sobre James Joyce, Lacan afirmou que a criação artística também pode funcionar como suplência. Não a construção delirante, mas a obra, o fazer, a criação tendo o efeito de tratar o gozo para não ser aniquilado por ele. Lacan chamou essa criação de sintoma, dando-lhe a conotação de organizador da experiência do sujeito.
O exemplo mais próximo é o de Arthur Bispo do Rosário. Internado durante 40 anos na Colônia Juliano Moreira, como se sabe, construiu uma imensa obra, na qual reproduzia e representava tudo o que havia no mundo para apresentar a Deus. Bispo fazia o inventário do universo, para produzir a si mesmo como sujeito. Para ele a representação das coisas para apresentá-las a Deus era correlata de uma transformação de si mesmo. “Essa miniaturas que eu fiz permitem a minha transformação”. “Eu devo estar pronto daqui a uns seis ou cinco meses. Dentro dessa representação aqui”. Em um dos seus panos, escreveu: EU PRECISO DESTAS PALAVRAS. ESCRITA. Para Bispo o delírio foi insuficiente para conter o gozo que o invadia. Essa tarefa teve de ser completada pelo trabalho concreto de escrever com linha e agulha o nome das coisas, reproduzi-las, reuni-las e classificá-las.
A teoria psicanalítica afirma ser necessário à constituição de um sujeito na psicose, à produção de um elemento (uma significação delirante, um labor, uma identidade imaginária) que sirva como organizador da condição subjetiva do paciente. Mas é impossível determinar diante mão o que funcionará como ponto de ancoragem, ponto de referenciação a partir do qual o paciente poderá se produzir como sujeito: o trabalho do próprio delírio, como no caso Schreber; a atividade laboral/criacionista ininterrupta, como foi o caso de Bispo. Em qualquer caso é dada ao psicótico a oportunidade de fazer o trabalho de circunscrever os termos de sua existência.